UM ANJO DISFARÇADO DE VÓ

A minha avó começou a descolorir. Eu já tinha uns 7 anos e a cada visita à sua casa, que acontecia umas três vezes ao ano, sua pele ficava mais alva e eu tinha certeza que ela estava virando um anjo.

Em uma época que os anjos não eram multifacetados e nas Minas Gerais barroca, essa era a primeira imagem que me vinha à mente observando aquela brancura tomar conta do rosto, mãos, colo e cada vez mais partes do corpo da minha avó.

Ela tentava disfarçar colocando pó de arroz para que a gente não percebesse, mas sua voz doce, suave e seu cheiro de lavanda não me deixavam dúvidas, os anjos existiam e eu tinha um cuidando de mim.

Seu sorriso não disfarçava sua timidez e sempre que o fazia, fechava os olhos e inclinava um pouco a cabeça, pedindo a um dos netos para aconchegar-se por perto, dando-lhe um abraço.

Vovó gostava de comer, mais do que cozinhar e ela cozinhava bem. “- Tudo é bom com arroz”. Ela manifestava sem pudor esse gosto que, hoje, deixariam horrorizados os que vilanizam os carboidratos, influenciando a família a adorar esse prato tão brasileiro.

Sentada à mesa farta, ela servia sempre o meu avô primeiro e, depois, a si mesma. Depois de satisfeito, outras colheres cheias eram oferecidas a ele, que recusava, e ela aproveitava o esforço já feito e colocava a comida no seu próprio prato, usando a refusa dele como uma desculpa para saciar sua vontade e repetir algumas vezes.

Pequena, e com alma feminista, eu já estranhava o fato dele não se servir sozinho, mas toda minha indignação se rendeu ao meu amadurecimento, compreendendo uma questão geracional mas, acima de tudo, reconhecendo que, em uma relação bem formal diante das pessoas, era uma forma de demonstração de amor entre os dois.

Filha única, ela nunca saiu da casa dos pais e constituiu sua família no mesmo lar que nasceu. Seu nascimento reluziu a vida dos meus bisavós com as cores do arco-íris e eles não abriram mão dessa luz, enchendo a filha de cuidados e mimos. A presença dos avós em casa ofereceu à minha mãe e tios uma leveza à rigidez do meu avô na criação dos filhos, seis ao todo.

Minha avó se identificava mais com o universo infantil e se misturava aos netos, e depois bisnetos, topando brincadeiras como jogar baralho, assistir algum desenho na televisão ou sendo cúmplice nas nossas travessuras.

O tempo foi lhe tirando algumas alegrias. Primeiro, o meu avô, que fez uma passagem reconhecendo apenas a minha avó no final da vida, permitindo-lhes uma reconciliação com o amor da juventude.

Depois, a comida. A consciência dos filhos e netos de que ela precisava fazer uma dieta restritiva e o controle do que ela comia eram quebrados com a cumplicidade dos bisnetos. – Pegue um biscoitinho para a Bisa? E minha filha ia e voltada escondida na cozinha levando consigo biscoitos, doces, bolos e, acima de tudo, uma amizade com aquela senhora tão amável.

Ela era linda! Nunca vou me esquecer dos seus cabelos fartos e seus fios brancos que pareciam brotar da sua pele descolorida, coroando aquele anjo com beleza e brilho.

Seu olhar, no entanto, apagou-se depois da partida do meu avô e nosso anjo criou asas há dois anos, indo se encontrar com o amor da sua vida.

4 gerações de mulheres!
Conhecendo a Bisa

Foto de Anna Shvets